Quando a felicidade é um caqui maduro
A vida dá voltas longas e cria realidades novas, distintas, inexoráveis. O que antes era tão simples vira dificuldade, distância, esforço, saudade. O que antes residia na esfera do impensável, impossível e incompreensível vira realidade. Para viver há que se compreender o incompreensível, aceitar o inexorável, superar distâncias e dificuldades. As coisas não acontecem por acaso, não acredito em acaso, tudo na vida é resultado de escolhas, de desejos profundos, de planos e de expectativas também. A espera de alguma coisa é, de certa forma, uma escolha, ainda que passiva. Eu acredito profundamente em escolhas, em decisões e que mudanças são frutos de decisões conscientes.
(aquarela japonesa com imagem do Diospyro kaki, a espécie mais popular de caqui japonês que foi introduzida no Brasil por esses imigrantes)
Mas esta conversinha não-determinista era apenas para falar da felicidade que mora nas pequenas coisas, de coisas simples, coisas que haviam ficado para trás, coisas que a língua inglesa define como 'taken for granted', como um caqui. Ou melhor, um kaki, como os japoneses que introduziram esta fruta nas regiões sul e sudeste do Brasil a chamam. Eu cresci comendo caqui, fruta farta nas feiras do Rio de Janeiro. E comendo direto do pé em sítios e fazendas tanto no Estado de Minas Gerais como no Rio de Janeiro. As árvores baixas, pequenas, carregadas de frutas, permitia que eu e meus irmãos, ou meus amigos, subíssemos com facilidade para escolher a mais doce de todas das frutas. Aquelas menos doces eram atiradas ao chão vítimas de uma mordida apenas.
Quanto eu era criança nunca poderia imaginar viver num canto do planeta sem caquis, milhares de quilômetros distante das árvores de caquis. Nunca imaginei, em sã consciência, que um dia eu iria privar meus olhos da beleza das árvores de caquis carregadas. A consciência da perda é sentida num momento curto de felicidade causado pela presença, inesperada, de um caqui maduro na minha casa. Ontem eu comprei um caqui, bem maduro, que parecia esquecido numa cesta de papayas no supermercado. Estava perfeito, no ponto, me esperando. Havia outros caquis, bem mais verdes, de uma família diferente. Mas aquele ali, com uma forte com de laranja, era para mim, havia ficado esquecido de uma outra colheita. O preço é de ouro, mas quando a fruta cheira e está no jeito eu compro e pronto. O difícil é achar fruta no jeito.
(o meu caqui de hoje, israelense)
Não é muito comum achar caqui aqui, aparecem raramente, não são muito conhecidos e os que chegam por aqui vem de Israel. Este caqui me fez muito bem, comi chorando, chorando por dentro, de felicidade. Comi sozinha, egoísta, solitária, mas em paz. Minha pequena família não registra a mesma experiência que eu, não iria entender, o prazer e a felicidade do meu momento. Nunca experimentou a alegria de comer um caqui maduro, tirado do pé, sem nenhuma cica, doce, doce, doce e macio do jeito que eu gosto. Sim, este menino israelense estava no jeito, no jeito para mim. E eu sobrevivi a tanta gostosura. Não importa quanto tempo eu leve para provar outro caqui tão bom, cada novo caqui será como um presente, uma surpresa e razão de imensa felicidade.
Aprendi que a minha felicidade pode tomar a forma de uma caixa de figos, de um maracujá, de uma goiaba vermelha, de cajú macio, de um pote de açaí, ter a cara de um mamão baiano, de um pote de geléia de jabuticaba, de um copo de suco de pitanga, de manga carlotinha ou de milho verde fresco, recém tirado da espiga e cozido. É resultado do prazer dos encontros casuais com pedaços da minha história, que eu imaginava perdidos para sempre dentro da memória. Sabores não se perdem, são como amores vividos, você lembra na hora as alegrias e as tristezas que eles causaram.
Hoje, de uma forma muito pessoal, eu celebrei os 100 anos da imigração japonesa no Brasil. Não fosse pela imigração japonesa eu teria sido privada de alguns dos meus melhores amigos nesta vida, que são filhos e netos de japoneses, e também teria sido privada da experiência maravilhosa que foi crescer cercada por pés de caqui, uma árvore nativa do Japão e da China.
Comentários
bjos
Beijos
Recebi sua cesta de frutas!
Clau,
Sabe que diospiro é o nome grego da fruta, fruta dos deuses. Mas preciso confessar que me sinto orgulhosa de usarmos no Brasil o nome japonês.
Beijos garotas!
C.
Aqui tem, mas sabe que nunca tive vontade de comprar... Nunca reparei no preço tb.
Esta saudade de certos alimentos é comum a todos nós que vivemos fora. Tem muitos sabores dos quais sinto saudade, mas, por outro lado, aprendi a apreciar outros poucos que não existem no Brasil.
Bjs :)
Como os fatos da nossa história são fortes, não? E os sabores, e perfumes, nunca se perdem. Assim que sentidos novamente, nos levam ao passado, mesmo que distante.
Adorei seu post. E que caqui lindo!
Beijos
lindo, lindo e lindo o seu texto.
Quem está aqui, é louco para ir ai e vc louca para vir aqui, para matar a saudades desse amor eterno.
Espero que encontre mais vezes essas delicias para lembrar um cadinho daqui.
Bjs e bom final de semana.
Eu sei a sujeira que um pé de caqui carregado pode fazer. Eles produzem como loucos, tem que fazer muito suco e muita geléia para consumir. Mas tua tia foi radical!!! Que pena que dá cortar uma árvore produtiva....
Heloísa,
História é tudo, mas eu falo isto pois sou historiadora. Pessoalmente acredito que compreendendo a história de vida das pessoas, dos lugares etc.. a gente chega mais perto de acertar...
Nana,
A vida é uma eterna prestação de contas, está sempre botando a prova as certezas e convicções das pessoas. Eu escolhi estar aqui, por uns anos, pensando na felicidade de outras pessoas e não apenas na minha. E para segurar a onda das minhas crises eu desabafo neste blog.
Obrigada pela visita garotas!
C.
O texto é lindo e emocionante, você tem talento com as palavras. Ainda bem que esse caqui vindo de Israel foi parar na Noruega para fazer você feliz.
Bjs