Divagando sobre o gelo, o frio e os povos do Norte


(Mulher Sami, da Finlândia por volta de 1905)

A vida deste lado norte do planeta está um inferno, de acordo com esta que vos escreve. Os dias estão curtos, curtíssimos e as temperaturas baixas, muito baixas. Este semana a temperatura durante o dia esteve entre -10C e -15C e durante a noite vai a pelo menos -20C ou mais. Para mim é um tormento viver assim. Uma coisa com a qual ainda não me acostumei.

Aqui perto, 200km ao sul, numa cidadezinha chamada Røros onde Knut, o meu enteado, vive (O Per tem um filho de 22 anos do primeiro casamento) estava fazendo de -21C na semana passada mas esta semana está fazendo -31C todos os dias. O Knut, que está estudando para ser chef, atualmente está cumprindo dois anos obrigatórios como trainee de chef, e trabalha na cozinha do restaurante de um hotel nesta cidadezinha histórica. A cidade é pequena e ele anda para o trabalho todos os dias, umas quatro ou cinco quadras mais ou menos. Será que alguém pode imaginar o que são temperaturas de -10C ou -30C? Quer dizer quatro, cinco ou dez vezes mais frio do que dentro do seu freezer/congelador. É um frio dolorido, cortante, insuportável, assassino. Não dá para ficar lá fora de bobeira, não dá para ter nenhuma parte do corpo descoberta, tem que usar roupas de baixo de lã, usar gorro, luvas, cachecol, não pode ter um sapato molhado, nem uma luva molhada, nada. A pele resseca terrivelmente, principalmente o rosto, as mãos e os lábios que ficam quebradiços e doloridos. A paisagem é branca, tudo fica branco e gelado. Lembra muito o castelo de gelo da bruxa má de Nárnia? Alguém lembra? Nárnia ainda é a melhor ilustração para o clima ao redor do meu 'chateau' durante o inverno.


(Homem Sami pescador na costa norte da Noruega, da região de Finmark)

Enquanto o clima é de inferno eu tenho um artigo muito importante para acabar. Estou trabalhando neste artigo desde agosto, sofrendo para escrever e meu prazo final é semana que vem. Estou enlouquecida, ansiosa para acabar, mas ao mesmo tempo sem muita paciência para o trabalho. Ao invés de me concentrar para acabar eu fico navegando pelos blogs, lendo receitas, lendo artigos, comendo ou dormindo. Sim, dormindo. Como eu ando trabalhando de casa estes dias quando eu fico muito cansada eu páro tudo e durmo. Marido no trabalho, crianças na escola e a mãe na cama! É que enquanto eles dormem sou eu quem trabalha já que escrevo melhor a noite e fico trabalhando até as 3:00 ou 4:00 da manhã e nunca consigo dormir antes das 5:00.


(Sami é um dos povos indígenas da Noruega, Suécia, Finlândia e Russia. Na foto uma família Sami norueguesa com a tenda e as roupas tradicionais, Noruega em 1900)

Com o clima 'sensacional' que faz lá fora não dá vontade de fazer mais nada, apenas dormir. Eu tenho absoluta certeza de que os seres humanos primitivos que viviam nesta parte do planeta durante o verão ou migravam durante o inverno, ou hibernavam, pois não há comida suficiente para alimentar a gente daqui e não há calor suficiente para ajudar esta gente a sobreviver. Os povos indígenas daqui são os Sami e eu sempre penso nos Sami, na vida que eles levavam nessa região séculos atrás. O território dos Sami se espalhe pela região central até a norte da Noruega, pela parte do norte da Suécia, da Finlândia e por uma grande área na costa noroeste da Rússia. Antigamente os Sami viviam em tendas e alguns ainda vivem em tendas até hoje. Eles se vestiam (vestem) só com lã e com peles e durante o inverno e só comiam carnes e gordura. Mas o fato é que o povo Sami se sedentarizou e hoje vive em casas com aquecimento central e energia elétrica.

Estudos antropológicos e genéticos demonstraram que os Sami são descendentes dos primeiros homo sapiens da Europa e tem a mesma ascendência que Catalães e dos Bascos do sul da Europa. A conexão entre Sami, Bascos e Catalães vai de encontro com minha humilde tese de que não é possível manter vida nesta região da Europa durante o inverno. No inverno os Sami partiam e retornavam na primavera. No sul eles adotaram a lã já que não havia carneiros por aqui, apenas alces e veados. Aqui você pode ler um pouco mais sobre os Sami mas apenas em inglês.


(A mamãe Sami com o bebê Sami, vestido para enfrentar o inverno-show, com temperaturas por volta de -40C na região Sami)


Mas eu não nasci para ursa, nem mesmo para Ursa Maior, nasci para ser Ararinha Azul, e aí a coisa fica muito complicada. Mas é com o frio, o gelo, a neve e a escuridão que dá para eu entender finalmente a lógica do Natal. Daqui eu vejo o Natal de uma outra forma, um outro ângulo. Percebo que o Natal, assim como o Carnaval, é uma grande celebração pagã adotada pelos povos cristãos. Daí tanta contradição entre datas e celebrações nas diversas igrejas cristãs do planeta. Não que eu me importe. Não me importo nem com as contradições, nem com o paganismo. Muito pelo contrário, adoro identificar a permanência das tradições pagãs em geral, meu paganismo existencial se acelera nesta hora. O fato é que o Natal, as luzes do Natal, os personagens do Natal (elfos, gnomos, ajudantes do Papai Noel e o Papai Noel em si) e as comidas de Natal são todas parte de uma antiga celebração pela vida durante o inverno Europeu. Aqui, no norte da Europa, com o inverno mais intenso, percebe-se claramente a celebração do Natal como uma festa da vida, pela sobrevivência dos povos do gelo. E o Natal começa bem cedo aqui e eu acho que é uma das coisas que ajuda esta gente a sobreviver. O Natal aqui é cercado de lendas, de histórias e de comidas especiais e é uma data que enlouquece o povo daqui de uma forma pouquíssimo cristã (isto talvez em outra postagem). Outro lance é que o Natal aqui ainda tem pouquíssimo apelo comercial, especialmente se comparado com o Brasil. Aqui o lance é comer e beber muito, muito mesmo, para viver, para sobreviver, acender velas e luzes para iluminar as almas, abrir os caminhos, chamar de volta os deuses antigos.

Este ano eu vou tentar aderir a uma tradição norueguesa:a dos biscoitos. Eu, que sou a pessoa menos tradicional do planeta, que detesto tradição, que gosto de encerrar tradições, estou pensando em aderir? Sim, a única tradição que eu gosto é a da esculhambação, da farra e da bagunça, do Carnaval. Mas vou aderir. Aqui há uma tradição das famílias de assar sete tipos diferentes de biscoitos ou bolos. Biscoitos e bolos são uma grande fissura norueguesa durante o Natal e eu vou tentar. Durante a próxima semana farei um esforço e vou tentar seguir a tradição. Será minha homenagem especial aos povos pagãos do norte.

Me aguardem.

(Fotos do sistema Wikipedia Commons licenciadas através da licença Creative Commons. Reprodução livre se respeitadas as determinações da licença Creative Commons. Para saber mais leia aqui )

Comentários

Glau disse…
Claudinha, impressionante o poder da sua escrita.. lendo seu texto parece que entro na sua casa.. sinto o frio, caminho com seu enteado, vejo vc passeando pelos blogs (agora consigo entender o horário dos seus comentários no madames).. vc é incrível.

Bom trabalho.
Bjo com carinho, Glau
Claudia Lima disse…
Claudia adorei as informações. Apesar de gostar do frio, eu entendo o seu sofrimento. De qq maneira, -20 ou -30ºC é um pouco demais da conta.
Em Utah, onde morei 5 anos, fazia uns -10ºC a noite, nos dias mais frios e "doia".
Conhecendo os confortos de hoje é inimaginável as dificuldades com que estas pessoas viviam, mas conseguiram de uma forma ou de outra.
Eu espero que um dia vc possa voltar a morar num local com temperaturas mais amenas.
Enquanto não dá, vamos fazer cookies!
Aguardaremos as novidade!
Bjs :)
Unknown disse…
Cláudia, que post maravilhoso. Cada vez gosto mais de visitar o seu cantinho. Eu adoro história, geografia, sociologia, em suma, adoro saber sobre a cultura de outros povos e adorei conhecer o povo Sami. Eu tenho muita admiração pelos povos que conseguem resistir em climas difíceis como esses, porque eu amo o sol e o calor e quando vem um friozinho eu encolho-me no meu canto, fico com vontade de não sair da cama. Não consigo compreender como seja viver com temperaturas de -20º. O mais frio que eu alguma vez senti foi 0º aqui em Lisboa e não foi uma temperatura comum. Eu já podia ter visitado a neve aqui mesmo em Portugal, na Serra da Estrela que é a região mais fria e nevada do país, mas nunca senti o apelo da neve. É muito lindo mas nas fotos.
Acho bem que cumpras a tradição dos biscoitos se ela te ajudar a superar este inverno tão duro. Eu gosto de algumas tradições, essa achei muito bonita e compreendi. Gosto muito da Escandinávia, gostaria muito de visitar um desses países aí do norte um dia, mas nos longos dias de Verão!
Bjs
♥ mesa para 4 disse…
Pois Claúdia...eu confesso que estou com inveja de voçê...porque eu nasci para ursa mesmo...adoro esse frio e adoro ainda mais vêr tudo branco, é fascinio mesmo... e mesmo tendo frio por aqui nada se compara a esse...um abraço daqui do sul
Cininha disse…
Olá Claudia, desculpe lá o que eu vou dizer, mas eu farto-me de rir com as suas cronicas de narnia :-)sei que é feio rir do mal dos outros, mas como já alguem disse que o poder da sua escrita é impressionante e eu concordo, consigo visualizar tudo e rio bastante com as suas descrições de carioca hibernada no frio hehehe.
Eu sou da zona da serra da estrela dos poucos sitios cá em portugal onde neva e tenho muitas saudades de quando era pequena e caía neve e para além disso gostava de um dia visitar um desses paises de frio nesta época.
Bjinhos
Claudia disse…
Garotas,

Por favor, riam de mim a vontade! Eu sou uma debochada e mesmo quando estou falando de alguma coisa que me entristece eu estou em geral fazendo alguma piadinha. Faz parte do meu show!

Glau, que bom que você viaja no meu texto! Eu também viajo nos teus!

Claudia, pois é, hoje o frio é molexa, mas já pensou nos séculos passados o piano que aquelas mulheres carregavam com crianças e bebezinhos para alimentar? Sempre penso no passado...

Isabel, o frio deste norte é um pouco demais, vai além do charme de ter uma lareira acessa e um copo de conhaque nas mãos. Aqui frio é coisa séria.

Mesa, que é bonito é e você não imagina como está linda a noite de hoje, de lua cheia, sobre a neve branca. Uma luz inacreditável.

Alcina, sonho em conhecer a serra da estrela de onde só conheço o queijo famoso. Sei que aí faz frio mas deve ser friozinho bom. Aqui, esta época, faz o frio extremo. Mas o povo daqui é totalmente acostumado, eu é que estranho e faço muita onda... Adoro que riam de mim, eu sou uma debochada e esou sempre fazendo piadas, ria mesmo, mesmo que eu não possa ouvir!!!!

Beijos,

C.
Claudia,
Que frioooooo!
E que povo forte!
Beijo
Cláudia Marques disse…
-31º?? Não consigo sequer imaginar... nem sequer os seus -15º! É preciso coragem, mesmo muita coragem. Para mim, 7º positivos já é um frio de rachar, fico toda encolhida e atrofiada.
É certo que aí as casas têm as condições adequadas ao clima, mas sair à rua já é outra história... pode crer que se eu vivesse aí, tb passava mto tempo na cama, com toda a certeza.
E os seus filhos, eles nasceram aí? Já estão acostumados, não é?

Adorei mais esta lição de História.
Beijinhos.
Anônimo disse…
Olá Ararinha Azul,
Adorei a leitura, eu adoro história, e como diz o ditado estamos sempre a aprender e essa sua crónica fez-me querer saber um pouco mais desse povo que até agora desconhecia. Eu que tal como você não gosto de frio, ou melhor eu adoro neve, mas sei que não conseguiria viver num país tão frio, eu nasci para ser lagartixa e apanhar muito sol ;)) por aqui estão 6º ou 7º pela manhã e pela noite e eu já não sei o que fazer, com menos trinta teria que hibernar ou morreria. Uma boa semana para você.
Bjs
Moira

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